O resgate teórico da psicologia soviética serve a qual propósito?
É simplesmente uma forma de trazer ideias que foram perdidas para repensar e superar a psicologia contemporânea? Ou está mais para um resgate teórico completo, em que realmente usamos os autores como base para nossa prática atual (como vigotskianos, leontievianos, etc)?
Gustavo, vou copiar o que escrevi lá no whatsapp, mas depois quero complementar com algumas coisas.
"Eu parto do pressuposto que os problemas da psicologia são relativamente os mesmos e daí então são feitas tentativas de responder esses problemas a partir de posições epistemológicas, filosóficas e políticas distintas (o que vai gerar as distintas abordagens). E parto da psi mhd não porque é a que mais me agrada ou a que mais me identifico, mas porque eu compreendo que é a abordagem que trouxe respostas mais satisfatórias para os problemas colocados.
Ok, colocado esse pressuposto, porque eu comecei a resgatar a psi soviética? Porque o que há de disponível em português e que em muitos lugares ainda se toma como a teoria completa é um apanhado de textos. Nem sei o que seria comparável, talvez pegar o Freud da primeira tópica e falar que isso representa a psicanálise inteira.
E em muitos lugares, é reforçado um discurso por parte dos psicólogos da phc de que a teoria é isso, e de fora vem muito essa crítica de que a psi mhd não dá conta de determinadas questões da realidade psíquica ou que outras abordagens "respondem melhor" a determinado problema. E a minha HIPÓTESE era de que isso se dava mais pela falta de acesso à grande parte dos materiais produzidos do que pela ausência desses materiais de fato.
E destaco ali a hipótese porque não tinha como eu ter certeza de que os psicólogos soviéticos tinham uma resposta melhor, mas do que eu pegava de apontamentos e referências em textos menos conhecidos, eu tinha esse vislumbre. A questão é, a escolha por uma abordagem ou outra vem pela efetividade e profundidade do conhecimento produzido por ela, ou por acessibilidade?
Então a primeira motivação era de conhecer o que foi produzido na URSS, principalmente considerando as particularidades do seu desenvolvimento: trata-se de um projeto coletivo nacional de desenvolvimento científico, não a produção de poucas cabeças ou de pequenos grupos de trabalho; era mobilizado por princípios éticos e políticos conscientemente alinhados com o mhd; buscava a construção de uma psicologia geral.
Agora, da segunda pergunta. Pra mim, é uma forma de trazer ideias que foram perdidas pra repensar e superar a psicologia contemporânea. Problema é, como fazer isso considerando que a montanha do que não conhecemos desses autores é imensamente maior do que aquilo que conhecemos. Mesmo de Vigotski, que é a grande estrela, temos acesso a um material muito limitado das suas obras (e muito mutilado por edições e traduções).
Eu tenho tentado fazer a partir da base fundamental da ciência: como compreendiam a psicologia, o que entendiam ser o seu objeto, seus campos de atuação, seus métodos, etc., ou seja, da psicologia geral. Algumas coisas se atualizam nesse meio tempo? Sim, os campos mudaram, os métodos se desenvolveram, etc., mas os princípios permanecem os mesmos, ou no caso não seriam princípios, independentemente se urss em 1945 ou Brasil 2025. Se não, também não faz sentido estudar o Capital, porque o capitalismo na época de Marx era muito diferente do capitalismo de hoje.
Falta estudos e materiais específicos sobre problemas contemporâneos da psicologia brasileira? Com certeza. Como a gente resolve? Usando o mesmo punhado de conceitos vigotskianos pra tapar buraco? Assimilando conceitos de outras abordagens que respondem a esse problema (perigando cair em ecletismos)? Ou investigando como que aquelas ideias iniciais se desenvolveram? Eu tendo a seguir o terceiro caminho, mas claro, o acesso ao russo facilita um pouco as coisas. E a experiência tem sido mais que positiva, não porque eu consigo apreender o desenvolvimento in loco de uma teoria, mas porque facilita uma série de diálogos novos com outras abordagens.
Por exemplo, no antigo discord eu e o Diego Mansano tivemos trocas muito interessantes sobre a proximidade do behaviorismo e da psi soviética quando falamos da centralidade que a ideia de contexto tem para um e para o outro.
A ideia não é que resgatando essa tradição, a gente se mantenha alheio às outras abordagens ou preso a problemas do passado, mas que a gente possa estabelecer novas formas de diálogo também entre abordagens, e novos caminhos de atuação que não seja recorrendo aos mesmos 3 livros que alguma alma caridosa teve o trabalho de traduzir.
Mas assim, por conta da página, muita gente me pede indicação de texto que fale sobre "phc e racismo", "phc e gênero", "phc e autismo". Maioria das vezes eu respondo que não existe, ou que existe pouquíssima coisa sobre (e no geral não existe muito mais que meia dúzia de textos que circulam). E o que eu reforço pra quase todo mundo é que a ausência de material implica que a gente precisa ser pesquisador e produzir esse material, não buscar uma resposta pronta em um artigo que vai sanar todas as minhas dúvidas e me dar uma fórmula acabada. Mas pra isso a gente precisa de um arsenal conceitual de fundamentação, e é isso que o resgate que eu faço tá tentando construir.
Tem um ponto interessante desse resgate, inclusive, que é justamente a importância da produção de sínteses e aproximações feitas pelos soviéticos a partir dos anos 1970 e 1980. Eles tinham um interesse muito grande em superar o estado de fragmentação de teorias e escolas.
Por exemplo, o Mikhail Iaroshevski, que é um dos melhores historiadores da psicologia na URSS na segunda metade do século XX, fez algumas sínteses bem interessantes do que seriam os principais conceitos/categorias da psicologia em diferentes níveis de análise. E sinceramente, não consigo ver uma abordagem da psicologia que se distancie completamente desse esquema. Pra ele, as sete categorias "básicas" da psicologia são: 1) self; 2) motivo; 3) ato; 4) imagem; 5) vivência; 6) interação; 7) situação.
Cada uma dessas sete categorias então teria cinco níveis de análise. Por exemplo, a categoria de "self", vai desde organismo (análise biocêntrica) para indivíduo (protopsicológica), para self (psicológica básica) para personalidade (metapsicológica) e então para ser humano (sociocêntrica). A de "motivo" vai para "requerimentos de vida do organismo" (biocêntrica) para necessidade, motivo, valores e ideais. E assim por diante.
Infelizmente o texto original eu ainda não consegui encontrar, mas esse esquema categórico tá presente em um artigo de 2019 da Irina Mironenko chamado Sobre o Vocabulário de Personalidade na Psicologia Russa. Deixei linkado caso queira acessar.
Acho que nesse ponto (e acho que muitos concordam comigo), a proposta soviética acabou sendo uma das mais consistentes na tentativa de criar uma ciência psicológica geral, e é o que faz ela ser tão rica conceitualmente. Hoje, a leitura que muitos historiadores russos fazem, é de que o fim da URSS e a entrada de outras abordagens diminuiu a força da psicologia soviética clássica e tornou o panorama muito mais parecido com a psicologia mundial: um foco mais prático e utilitário do que teórico-epistemológico, uma formação mais tecnicista e não científica, o que fez a psicologia perder muito o status de ciência e a qualidade da pesquisa e se tornar muito mais uma prática técnica e de processos.
Eu sou muito reticente com a ideia de que a psicologia soviética tem todas as respostas para os nossos problemas. Mas também me chama muito a atenção que hoje alguns dos desenvolvimentos e descobertas mais importantes da nossa ciência já haviam sido desenvolvidos pela psicologia soviética vinte anos antes rsrs. Sem falar na perda da qualidade quando esse material vem pra cá, como o caso da neuropsicologia luriana e o que a neuropsicologia hegemônica é hoje.
@brunokatharsis Bruno, muito obrigado pela resposta. É exatamente o que eu procurava heheheh
Quando fala sobre a psicologia soviética como construção de uma psicologia geral, você se refere à Histórico-Cultural vigotskiana (e seus sucessores)? Ou à psicologia soviética em geral, com todas suas propostas e variações?
Colocando em outras palavras: a proposta de psicologia geral é bem sustentada pela linha vigotskiana?
@gustavogneves Arriscando ser um pouco polêmico, eu diria que a Teoria Histórico-Cultural talvez seja aquela que menos tenha avançado na construção de uma Psicologia Geral, dentre as escolas da Psicologia Soviética. Claro que tem todo um debate sobre herança, sobre quem é de fato sucessor de Vigotski, etc.
Mas por exemplo, L. I. Bozhovich se concentrou em temas específicos, A. R. Luria também. Ambos tem textos muito interessantes, mas nenhum deles pode ser chamado de um Psicólogo Geral como foram S. L. Rubinstein, B. G. Ananiev, D. N. Uznadze, etc.
Então respondendo a segunda pergunta, eu acho que L. S. Vigotski dá algumas bases pra se pensar a Psicologia Geral (principalmente nos seus textos mais focados em método, epistemologia, etc.), mas mais como crítica à crise da psicologia do que de fato uma proposta de construção de uma psicologia científica geral. É mais ou menos o mesmo que vejo no seu contemporâneo, Georges Politzer: uma ótima crítica da situação de crise e das suas causas, algumas propostas de como solucionar isso, mas poucos desenvolvimentos reais nesse sentido (em ambos os casos, mais por contextos históricos e externos à própria teoria deles).
Uma coisa inclusive que acho que deveria ser melhor discutido, no caso da THC, é sobre a teoria geral da THC e as teorias particulares. Quais conceitos vigotskianos são pensados em contextos gerais e quais são específicos de determinados focos de atuação. Compensação é um conceito geral? E Situação Social do Desenvolvimento? E Zona de Desenvolvimento Proximal? E Internalização/Enraizamento? Sistema Psicológico?
Vigotski foi um psicólogo geral, sim, mas também foi um psicólogo particular, no sentido de se voltar à áreas práticas específicas de atuação psicológica. E uma das suas críticas mais constantes era a da elevação de conceitos particulares à categoria de conceitos universais.
Mas do que eu vejo, o processo de síntese das diferentes escolas que começa a surgir nos anos 1970 conflui em vários sentidos com o que o Iaroshevski coloca naquela tabela no artigo que citei anteriormente. Quase nenhuma vai elencar um único conceito central da ciência psicológica (consciência, ou atividade, ou função psicológica, etc.), mas vai entender, cada um com sua lista, que à psicologia lida com toda uma série de categorias interrelacionadas e essenciais (Atividade, Processo, Consciência, Personalidade, Reflexo, Motivo, Sentido, etc., etc.).
@brunokatharsis eu gostei bastante das suas respostas, me colocou pra pensar. Tenho tentando refletir sobre o problema da Psicologia Geral e conversado com tantos amigos quanto posso, de diferentes mediações teóricas, pra tentar entender o que temos de psicologia geral e quais caminhos fazem algum sentido perseguir. O Gabriel é quem mais troca comigo sobre, mas há também outros.
Queria te pedir mais referências sobre o trabalho e a proposta do Mikhail Iaroshevski, em especial sobre as categorias que mencionou. S
E enfim, perguntas pra seguir a conversa.
Seriam essaa categorias um bom enquadre pra uma síntese das mediações em um caminho geral? Quais os princípios que são inegociáveis e que permitem uma antropofagia das mediações em direção a uma síntese não eclética, mas materialista?
@diegomf Então, Diego, até onde eu saiba essas ideias do Iaroshevski estão no livro "A Psicologia no Século XX", que foi traduzido pro espanhol nos anos 70. O PDF não é dos melhores, mas da pra ler.
Não sei também se lá a coisa tá tão sistematizada quanto nos comentadores, mas nas duas vezes que vi essa categorização, ela aparece assim, tabelada.
Inclusive encontrei um artigo de um colaborador do Iaroshevski que elabora melhor todos esses conglomerados categórico. Tá no processo de tradução e logo deve ser compartilhado (passei na frente pra sair já mês que vem).
Esse tema me é muito caro, mas o estudo dele acaba sendo postergado porque demandas mais imediatas da clínica e das supervisões tem tomado meu tempo disponível de leitura e estudo, mas me parece que dos soviéticos no pós-guerra, o Iaroshevski foi um dos que mais se preocupou com o problema da fragmentação da psicologia (tanto a nível nacional, na URSS, quanto internacional).
Do pouco que li sobre (e foi realmente muito pouco), essas categorias parecem compor o corpo básico de qualquer sistema psicológico. Se há algo que foge do escopo, eu ainda não captei, mas arrisco dizer que esse seria um ótimo ponto de partida pra qualquer elaboração sobre a ciência psicológica.
E considerando minha inclinação com a teoria do Rubinstein (e Iaroshevski foi seu aluno), me parece que a proposta do Iaroshevski é uma tentativa de ampliar e aprofundar as noções centrais que pro Rubinstein fazem com que a psicologia seja uma ciência distinta e relativamente autônoma dentro das ciências.
E daí além das categorias centrais, que estamos discutindo aqui, faria sentido também uma discussão sobre os princípios e leis gerais, sobre o aspecto dinâmico, o movimento do conjunto de fenômenos pertencentes ao estudo psicológico. Enfim, discussão pode ir longe.